quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

C17H19NO3




Con amor y con dolor


Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite.

Tal qual Ana Néri – cujo rosto, para mim, sempre foi o de uma bela loira com o indicador sobrepondo transversalmente os lábios em forma de bico, emoldurada em um quadro branco, fazendo "shh", pedindo silêncio, lá do alto, intocável – ela, a bela loira, portava uma seringa usada em suas mãos. O êmbolo pressionado escondia um resíduo líquido entre si e a finíssima agulha. Poderia muito bem ser algum remédio, mas, como dizem, a diferença entre o que cura e o que mata pode ser apenas a dosagem.

Ela seguia sobre os ladrilhos da Santa Casa de Misericórdia. Dobrou uma das esquinas dos intermináveis corredores cor de creme e deparou-se com um rosto familiar. O rosto de uma bela loira emoldurado em um quadro branco, olhando-a de cima, com ar de superioridade e repreensão. Ao chegar mais perto, teve a sensação de olhar para si mesma. Ao ver o gesto de pedir silêncio, acompanhado de um sutil sorriso, soube que poderia contar com a sua cumplicidade.

Para o que ela fizera não havia perdão, mas, estando na Casa da Misericórdia, imaginava que poderia haver um pouco de compreensão por parte de seus superiores. Tanto os de carne quanto os de espírito.

No fim do corredor um vulto a surpreendeu, aumentando os seus batimentos cardíacos. Era um padre. À medida que ele se aproximava, suas pupilas começavam a se contrair. Eufórica, seguiu, de cabeça baixa, em direção ao irmão. Sentiu os músculos enrijecerem. Já não sentia as pontas dos dedos, estavam completamente dormentes, deixou a seringa cair no chão. A dez passos do sacerdote, começou a sentir calores e coceira na pele, começou a passar suas unhas insensíveis sobre a pele do antebraço. O irmão a cumprimentou com um meneio de cabeça e um sorriso, ela seguiu em frente. Pensou ter visto uma acompanhante de um paciente fumando à porta de um dos quartos da ala. Ao aproximar-se, viu que não havia viva alma ali. Dobrou mais uma esquina. Sua respiração estava dificultosa, tentou tossir e o ar não saía. Tentou mais uma vez, e outra. Sentiu-se sufocada. Tentou mais uma vez. O ar não lhe veio, e sim o jantar. Uma golfada de vômito, acompanhada de tonturas, fizeram-lhe quase tombar. Segurou-se na parede creme. O mundo girava ao seu redor.

Apesar de tudo isso, a dor continuava. Nunca seria perdoada pelo que fizera. Desmaiou sobre o seu vômito. Achou que poderia por um fim naquela dor que a corroia. A dor de uma rejeição. Tudo começou a escurecer, seus batimentos cardíacos diminuíram, diminuíram, e foram diminuindo até quase cessar. Eram duas da manhã. Os corredores estavam vazios. Estava longe da enfermaria. Não havia sequer uma acompanhante de paciente fumando àquela hora da madrugada.

Quando seus batimentos cessaram por completo veio o alívio. Não seria perdoada por ter trepado com um dos padres. Não seria perdoada por ter – após a rejeição em uma segunda e mais algumas investidas – tentado aliviar a sua dor com morfina dos estoques da Santa Casa. Não seria perdoada.

Agora, finalmente, a dor se foi e o seu perdão está nas mãos do Espírito Santo. Misericórdia.

Pelotas, 16 de fevereiro de 2009


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2 comentários:

Anônimo disse...

uau

C. A. disse...

tão branco como os corredores longos de um hospital; tão negro quanto os olhos que imaginei serem dela.

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