sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Resgate


Abaixo vai um conto que eu escrevi há alguns anos, na época eu não tinha blog pra publicar, mas acabei roteirizando e virou um curta-metragem, com narração do Zé Vitor Castiel.
Com vocês...



Interiores Frágeis

Ana Lúcia não tirava de sua cabeça a idéia de progredir em sua vidinha medíocre e sem oportunidades. Não tinha filhos nem marido, trabalhava no comércio, era vendedora em um bazar de mais-ou-menos-um-e-noventa-e-nove, próximo ao mercado central. Freqüentemente notava a garganta irritada – culpa do cigarro, talvez – pensava. Não era bonita nem feia, sempre foi solteira por opção, ou talvez por passar despercebida por onde quer que fosse. Sua personalidade tinha a intensidade de um copo d’água. Ela era, como bem lembrava das aulas de ciências do ensino fundamental em uma escola do município, insípida, inodora e incolor. Agora, próxima da casa dos trinta, não era diferente, a não ser pela idéia das iminentes rugas que ainda não lhe haviam despontado. Sua passividade ante sua realidade irritava algo dentro de si, mas ela, “movida” por esta mesma passividade, continuava imóvel. Seu cotidiano diurno era como um invólucro lacrado recheado de alguma coisa morta que, de alguma forma, desperta um sentimento de tristeza ou piedade. Algo como aqueles vidros de Nescafé com fetos inchados de cavalo boiando em formol, com uma coloração amarelada, tipo mijo, que se eternizam nas prateleiras dos laboratórios escolares.

Ouvia diariamente a mediocridade tagarelando em seus ouvidos, pela boca dos fregueses. Inalava a mediocridade, na ida para o trabalho, pelo exaustor das carrocinhas de churros acampadas no calçadão. Observava a mediocridade na expressão do cachorro sarnento que disputa espaço com um já célebre mendigo sob a marquise de um banco. Esbarrava na mediocridade a cada esquina que desdobrava à força de seus passos. Degustava a mediocridade no fel habitual que lhe caía sobre a língua e percorria seu sistema digestivo até chegar ao estômago que sempre lhe faltava nos momentos decisivos. A tudo isso, em seu caminho de volta, percorrido em parte a pé e todo o resto em um ônibus lotado, adicionava-se uma bela dose de cansaço físico.

Esgotada pela moenda que lhe esmagava as vértebras, uma a uma, dia a dia, já noite alta, girava a chave na fechadura e, ao ver o abajur aceso e seu divã vermelho no abrir da porta que range, era como se deixasse pra trás parte do peso de suas responsabilidades. Algumas horas de descanso para o seu corpo já eram suficientes. Para sua alma seriam necessários a eternidade e mais alguns minutos após esgotado o tempo regulamentar. Com os olhos rubros e o corpo formigando entrava no banho, fazendo descer pelo ralo o asco impregnado em sua pele.

Renovada, preparava-se com esmero, com minúcias, para, enfim, transformar-se em uma outra pessoa. Quem a via penetrando com tamanha audácia os ambientes luxuriosos que faziam parte da rotina de seu Eu noturno, nunca imaginaria vê-la sob um coletezinho azul com o nome de uma lojinha popular impresso em letras brancas. Lá naquele lugar ela já nem lembrava de seus afazeres diurnos, das contas a pagar e muito menos da família que um dia tivera. Estava lá, sempre, para se divertir, para viver um papel, um papel para o qual não havia sido escalada no momento em que escreveram o roteiro de sua vida, da qual sempre fora uma simples figurante. Era lá que encontrava, com freqüência, pessoas que lhe pareciam dar atenção. Lá que ela podia beijar outra mulher, Savanah – na verdade Silvana –, uma de suas muitas “amigas”, com uma sensualidade que nunca imaginaria ter ao beijar um homem. Beijavam-se não só com os lábios, mas com o corpo todo, com cada extensão. Cada centímetro parecia possuir uma espécie de língua com uma cavidade bucal correspondente do outro lado. Assemelhavam-se a uma só pessoa, dada tal magnífica fusão. Era desta maneira, em um ciclo de picos e vales, que a vida de Ana Lúcia se equilibrava, sobre um fio de tolerância quase invisível e sem sustentação. Um pouco de álcool e algumas drogas disfarçavam sua aparência pacífica, fazendo emergir de seu interior uma espécie de leoa furiosa, sedenta por tudo e por todos. Engolia a sua companheira como se quisesse levar pedaços dela entre os dentes para desfrutar de seu gosto no dia seguinte, vivia intensamente cada momento com seus amigos fugazes para contrastar com as companhias que tinha que aturar em horário de expediente, desfrutava daquele ambiente enfumaçado de cigarro e volatilizado de bebida como se noite após noite não retornasse sempre para fazer sua fuga diária e apagar da mente as paredes lotadas de carrinhos de plástico vagabundo, cestinhas de lixo com vaquinhas pintadas e utensílios domésticos descartáveis de múltiplo uso. Era essa a vida de Ana Lúcia, por inteiro, de dia uma presa dócil e míope, caminhando constantemente em direção a um enorme sumidouro feito de lodo e repleto de mediocridade, à noite uma ave de rapina, sempre pronta para agarrar indefesos animais que pensam estar seguros sob uma máscara de superficialidade feita de um fino vidro que de nada serve para proteger seus interiores mais frágeis ainda.

Na manhã do dia seguinte Ana Lúcia não apareceu para trabalhar, nem na outra, e nem nas que se seguiram, seu patrão já começava a pensar em lhe enviar uma carta de aviso de demissão. Sua existência só foi notada em seu prédio, pela primeira vez, quando de seu apartamento começaram a exalar os odores putrefatos de sua carne em decomposição e alguns vizinhos começaram a reclamar, pensando ser o cheiro de algum animal morto. Em suas mãos foram encontrados apenas uma caixa vazia de Ri-do-rato e um bilhete em branco, assinado por ela e dirigido a ninguém.

Pelotas, 07 de abril de 2003


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